terça-feira, 25 de maio de 2010

LOVE STORY

LOVE STORY

Os dois, ali, na sala do OFN (Observatório de Fenômenos Naturais)
e Rastreamento Via Satélite, bem ao centro duma pequena escarpa
rodeada pelo verdume da mata atlântica. Ambos de meia-idade.
No rádio de pilhas, o som despretensioso e quase despercebido
de 'Azul da cor do mar' com o Tim Maia. Já se passava da meia-
noite e eles, um tanto circunspectos, por ora desligavam-se de suas
obrigações profissionais. Permaneciam calados. Viajavam.
Entreolhavam-se a cada bolachinha recheada que vagarosamente
retiravam do pacotinho. Um de frente pro outro. Sabe-se lá no que
pensavam naquela solidão a dois de desejos que há muito os
incomodavam. Estavam órfãos de um grande amor.

O homem de seu canto da sala, num arroubo poético, acabara de
escrever, bem ao estilo natureba, uma quadrinha  na folha do bloco
de anotações. Assim: "um da loca, outro da toca, não se cruzam,
trombam na rota." Mandou um aviãozinho que pousou sobre a mesa
dela. No que ela desfez as dobras e leu o que, no entender dela,
era uma cantada, a maior que ouvira em toda sua vida: sutil,
insólita, etc.

Um correu em direção ao outro e começaram a se beijar loucamente.
Agora só as telas dos computadores permaneciam acesas. Menos de
5 minutos e todos os velcros e zíperes foram abertos. Estavam nus
na sala, alienados do mundo. À frente, uma praia paradisíaca. Saíram
correndo num pega-pega cerimonial. Ela riu aquele riso frenético de
fera no cio quando olhou pra trás e viu o homem, na disparada,
tentar urinar com o pênis ereto, duro. Transaram mais uma vez e
rolaram nas areias brancas donde se escutavam os grilos e os sapos.

Resolveram nadar e, em braçadas descompassadas, já estavam em
águas profundas, até que: Viração!

O mar revolto (dou um desconto, pois num clima destes alguém se
lembraria de consultar a tábua das marés?). Ondas enormes
arrebentavam nas pedras inda mais enegrecidas num cenário que
tornara-se cinza-chumbo. O óleo diesel, dum petroleiro encalhado,
pintara os corpos nus de uma felicidade mais fugaz que tempestade
veranense. Levados pela corrente foram parar numa praia particular
de foragidos arianos, ultrarracistas e solífugos.

Dois corpos negros, castigados pela fúria da natureza, recolocavam
os pés onde as ondas não mais os alcançavam. Já agora ressentidos,
lado a lado e de mãos dadas, regressavam ao escritório onde tudo
começara, tristes e revoltados com o final de uma fantasia catastrófica,
segredista, que esvaiu-se e os marcaria pelo resto de suas vidas.

Dois tiros! Dois tiros pelas costas os atingiram na caminhada. O
sentinela/capanga, que só tinha 50% da visão, recolheu os corpos
negros, untados, um de cada vez. Incinerou-os na fornalha secreta
do subsolo do casarão sombrio. Naquela noite, ao som de Wagner,
brindaram solenes a mais uma limpeza étnica.

...

Poderia ter encerrado por aqui, mas...

Autointerrogações de um marido, quer dizer, de um contista
traído, ou seu diálogo consigo mesmo:

-- Tudo bem que os dois eram casados. Sabe como é... acontece.
-- Não posso crer! Será verdadeira essa história?
-- Claro.
-- Lembra quando lhe disse que desconfiava de minha mulher?
Há tempos, na calada da noite, quando ela sai pra trabalhar,
sigo no seu encalço. Vi tudo. O curso de detetive particular por
correspondência veio bem a calhar, eh, eh. Só estou pensando
no seguro de vida. Nem precisei me esforçar.
Que romance mais azarado. Sorte minha!
-- Mas como receber o seguro?
-- Você sabe, sabichão. Já tenho um dublê de corpo preparado
com as joias que lhe dei de presente. Tudo documentado...
É só dar uma esfacelada no corpo. Ah-ah! Pra quê? -- se
sou eu que fará a autópsia? -- se sou eu que fará o reconhecimento
através das joias de um ex-casal feliz, na aparência.  E nesse fim de
mundo tudo se ajeita, ah-ah!
-- Bom amigo, muito bom!
-- Eu sou um gênio. Preciso mandar umas flores pra viuva. Etiqueta,
sabe como é...

Depois que li este conto veio-me um poema romântico,
sarcástico, ácido, poluído:

corpos nus
quereres prementes
traídos pelo destino
restou o ranger de dentes

oh, corpos nus
sarados energizados
aventura que lhes atraem
coitados foram untados
de negro óleo diesel
tanto desejo concentrado
descarado
num final horrível

congelei meu sorriso
isto que é incrível!

faço rock nas marimbas
um, de ondas mansas
sobrou-me só lembranças
daquelas restingas,
de um  love story
ah, nem  as cinzas.

***



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