Vendeu o Fusca e foi pra Paraíba
Veio ainda moço pra São Paulo. Filho de índia com um
descendente holandês dos tempos em que os branquelos
invadiram o Nordeste, Foi criado por uma família judaica
que fazia pão ázimo com farinha de mandioca. Mas o que
mais gostava era de buchada de bode e de nadar nos
açudes e cisternas. Por isso tinha os pés cascudos que
espinho nenhum atravessava. Um dia, o primogênito do
casal judaico expulsa-o da família. Onde já se viu criar
um bastardo como filho e depois, com a morte dos velhos,
ter que repartir os bens. Fora paraíba! Fora enferrujado!
Pegou suas trouxas, uns poucos dinheiros e embarcou
no Ita pra cidade colosso. Nossa! Ficou completamente
abobado ao desembarcar na Rodoviária do Tietê. Não
sabia que havia tanta gente no mundo. As primeiras noites,
ao relento, feito cão vadio, feliz com tamanha liberdade,
dormia de consciência leve. Pra ele não era novidade
nenhuma. Informando-se aqui e ali passou por vários
empregos na construção civil logo depois que tirara
a Carteira Profissional e demais documentos num destes
escritórios do Poupa Tempo.
Cansado desta vida em que perdera os costumes judaicos
fez um acordo com a última empreiteira e mudou-se para
uma vila entre a primeira e segunda balsa da represa Billings.
Fez um barraquinho e pôs um placa na porta: 'Consertos
Geral de Serviço de Quebra Gaio' (sic).
Como tinha a facilidade de consertar tudo naquele nicho
escondido da civilização, começou a se dar bem, pelo menos
pra levar uma vida digna, e se vestir com os produtos
de anúncios televisivos. Era comum vê-lo nas banquinhas
de produtos piratas.
Um dia ganhou no bicho. Viva! A primeira coisa que fez foi
comprar um Fusca de um pai-de-santo que fora assassinado
por um de seus guias. E lá ia o Ferrugem pra lá e pra cá no seu
Fusca laranja. O celeular, o celular!... mais um chamado de
emergência: um carreto, um encanamento, um poço, uma fossa,
um curto circuito, uma instalação de TV paga por baixo do pano.
E lá ia o... loirinho veado do Fusca laranja!
Com tamanho contentamento ateou fogo no barraco. Fez do
carro seu lar, seu modo de vida. Tinha formiga na bunda e não
parava um só instante. Um lar? Pra quê?
Pura inveja e maldade do povo. Quantas fubangas o rapaz traçou
no carro, que tinha uma frase no parabrisa: 'Carreteiro do Amor'.
A popularidade traz problemas. Dormia, comia e fazia amor dentro
do carro que dizia dividir com um alienígena proseador. Ou seria
o maldito guia ou a alma do pai-de-santo? E ali, debaixo da
paineira, ficava mirando as estrelas com aquele forró incessante
no radinho de pilhas que recebera como pagamento de um serviço.
Numa noite calma, só com os grilos e sapos que coachavam ao
redor, foi abordado por dois bandidos e obrigado a ir com eles
como refém e motorista. Assaltaram o minimercado lá da vila
e todos viram o famoso Fusca laranja do loirinho veado. Levaram
toda a grana, uns pacotinhos de bolachas, um naco de mortadela
defumada, pães e ingredientes de feijoada. Foi obrigado, com uma
arma no cangote, a deixar os marginais e esperar o ônibus que ia
pra São Bernardo no acostamento da Via Anchieta. Ah, durante o
assalto foi algemado ao volante do carro e teve a boca lacrada
com adesivo, destes, usados em plotagem.
Não podia voltar à sua antiga vida. Dar um BO nem pensar.
Os fofoqueiros de plantão diriam: "Lá vai o ladrão veado,
que transa com alienígena, do 'maldito' Fusca laranja!" Como
poderia viver assim feito gato alongado? E nessa hora,
lá por outras bandas, já estariam dizendo que ele pertencia ao
PCC e que dava o cu pro Fernandinho Beira Mar. Pode?
Tudo o que ele construiu havia se desmoronado numa noite.
Sentiria falta da cabrita que quebrava seu galho. Sentiria falta
da Simonele, uma negra velha e desdentada que em delírios
sexuais dizia a ele: 'ai se esse Fusca falasse'. E os amigos
do boteco do seu Gatamorta? A natureza? As águas da
represa onde banhava-se!? Tudo perdido.
Esperou clarear o dia e foi até o Riacho Grande. Depois
de muita conversa e negociação, alisou o carro como se
fosse uma mulher, chorou escondido do comprador.
Olhou os carros indo e vindo na rodovia. Pensou em voltar
atrás e explicar tudo, mas quem entenderia.? Sentia-se
marginalizado e excluído. Acendeu mais um cigarro e fechou
o negócio. Mil reais. Vendeu o Fusca e foi pra Paraíba.
O novo dono do Fusca que se dane e pague o pato.
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